Sepp Kuss converteu a sua amabilidade no principal trunfo para ganhar a Vuelta, tornando-se no novo favorito dos adeptos do ciclismo, conquistados pela lealdade e fair-play deste homem das montanhas que, finalmente, acreditou no seu potencial.
Kuss é uma daquelas pessoas boas com que nos cruzamos poucas vezes na vida, um ciclista afável, abnegado, profundamente dedicado aos seus líderes – aquele sorriso com que presenteou Jonas Vingegaard e Primoz Roglic após as ‘traições’ dos seus companheiros na 16.ª e 17.ª etapa não era falso -, e um exemplo de fair-play, como se viu quando se apressou a pedir desculpa ao espanhol Mikel Landa (Bahrain Victorious) por ter sprintado para passar a meta em terceiro, por precisar de bonificações para defender a camisola vermelha do ataque dos seus colegas, no alto do Angliru.
O norte-americano, descobriu-se nesta Vuelta, é adorado pelo pelotão, tanto que até um ciclista consensual e ponderado como Geraint Thomas saiu a terreiro para intrometer-se num assunto que não era seu, dando voz ao pensamento não só de ciclistas e ex-ciclistas como de milhares de adeptos em todo o mundo.
“Lamento pelo Kuss, sinto que merece um pouco mais de respeito, não necessariamente por parte dos corredores, mas da equipa […]. Obviamente, adorava ver o Sepp ganhar e penso que a maioria do pelotão também”, disse o campeão do Tour2018 e vice-campeão do último Giro, em que Kuss, como sempre, ajudou Roglic a levar a camisola rosa para casa.
A bondade do ‘Durango Kid’ (o miúdo de Durango, em tradução livre), assim como a humildade e lealdade para com os homens para quem habitualmente trabalha – é o único do plantel a ter estado nas seis grandes Voltas conquistadas anteriormente pela equipa desde que passou a denominar-se Jumbo-Visma -, foram os maiores obstáculos que enfrentou na defesa da camisola vermelha, impiedosamente atacada pelo campeão do Giro2023 e das edições de 2019, 2020 e 2021 da Vuelta, e pelo atual bicampeão do Tour.
“Ele é um tipo demasiado bom. É o problema do Sepp. Ele não consegue ter a autoridade para, na reunião da equipa, dizer ‘eu quero ganhar esta volta, rapazes”, notou o antigo ciclista irlandês Sean Kelly, vencedor da Vuelta1988.
Mas o escalar da polémica após a etapa do Angliru, em que Roglic atacou e levou na roda Vingegaard, com ambos a ‘abandonarem’ Kuss quando o camisola vermelha passava dificuldades, obrigou os diretores da Jumbo-Visma a intervirem e fazerem um ultimato às duas estrelas da equipa: ambos teriam de trabalhar na defesa da camisola vermelha. Mais ou menos satisfeitos, os dois ‘escoltaram’ o corredor de 29 anos rumo à vitória na sua primeira grande Volta, celebrada já no sábado quando os três cortaram a meta abraçados.
Para o norte-americano, lidar com a luta de egos na formação neerlandesa terá sido mais difícil do que escalar montanhas, o seu ‘habitat’ natural, ou não tivesse sido aí que nasceu, onde vive atualmente – em Andorra, com a mulher, a catalã Noemi Ferré, e a cadela Bimba – e onde passou quase toda a sua vida, pessoal mas também desportiva.
Filho de Dolph Kuss, o treinador da equipa norte-americana de esqui nórdico entre 1963 e 1972, incluindo nos Jogos Olímpicos de Inverno de Innsbruck1964 e Sapporo1972, Sepp começou por não fugir ao seu ‘destino’, iniciando-se no esqui aos seis anos.
“Descobri o ciclismo a treinar para ser melhor no esqui de fundo”, revelou recentemente. Mas a primeira experiência do agora vencedor da Vuelta na modalidade foi no BTT, até porque, segundo o próprio, nenhum dos seus amigos de Durango tinha uma bicicleta de estrada: “[Diziam] ‘Por que havíamos de fazer ciclismo de estrada quando podemos fazer BTT que é muito mais divertido e porreiro?’”.
Kuss estreou-se nos Mundiais da vertente em 2014, enquanto sub-23, e ainda repetiu a presença no ano seguinte, mas acabou por perceber que o mundo do BTT era demasiado previsível, trocando finalmente de ‘especialidade’ em 2015, enquanto estudava publicidade na Universidade do Colorado.
Logo na segunda época dedicada à estrada, impressionou com as suas exibições no circuito norte-americano e foi contratado pela Rally Cycling, uma equipa do segundo escalão mundial que o trouxe à Volta ao Algarve em 2017, a época em que somou resultados consistentes e captou a atenção da Jumbo-Visma.
A formação neerlandesa viu-lhe um inegável potencial nas montanhas, confirmado logo no ano de estreia no WorldTour, com um triunfo na geral e em três etapas da Volta ao Utah, que lhe valeu a ‘convocatória’ para a Vuelta, logo na sua primeira época entre os ‘grandes’.
A sua personalidade discreta, a pouca autoconfiança, espelhada em entrevistas como a que deu ao site especializado CyclingNews em 2020, na qual assumia não ter a mentalidade para ser um candidato à vitória numa grande Volta, ou as dificuldades no contrarrelógio e em lidar com a pressão de liderar ‘relegaram-no’ para o estatuto de gregário, mas não um qualquer, um dos melhores do mundo.
“Sepp é o melhor ajudante de montanha do mundo. Tentámos gerais com ele em 2021 e avaliámos. […] Diria que esse papel [de gregário] assenta-lhe melhor”, defendia ainda esta época o diretor Merijn Zeeman em declarações à Velo.
Devotado a trabalhar para outros, o norte-americano raras vezes teve oportunidade de brilhar a solo, sendo os triunfos numa etapa da Vuelta2019 e outra no Tour2021 as principais linhas do seu currículo até esta edição da prova espanhola, na qual foi lançado numa fuga pela equipa à sexta etapa, que ganhou, e que o deixou em segundo na geral, posição que melhorou na oitava tirada, vestindo a camisola vermelha para não mais a despir, graças a prestações sólidas na montanha e uma defesa competente no ‘crono’.
“Nunca esperei estar nesta situação, não sou um vencedor no sentido de ter de vencer custe o que custar. A maioria dos campeões têm um pouco de sangue frio para vencer, e eu não sou assim”, confessou após os difíceis dias que viveu na última semana da Volta a Espanha.
Talvez por isso, Kuss conquistou os adeptos do ciclismo, com a grande maioria a preferir a sua vitória frente a Vingegaard e Roglic. “Não sei por que os outros gostam de mim e querem que eu ganhe! Sou só um ser humano, como os restantes. Somos todos competidores e, por vezes, é difícil ver o lado humano, mas eu simplesmente tento ser amável com todos, fazer o meu melhor pelas pessoas”, concedeu o novo campeão da Vuelta e dos corações dos seguidores da modalidade.