Tao Geoghegan Hart (INEOS) supriu a queda e abandono do líder da equipa, o compatriota Geraint Thomas, para ganhar o Giro d’Italia, o maior feito de uma carreira ainda a arrancar.
Num contrarrelógio em Milão, decidiu a seu favor uma Volta a Itália que, pela primeira vez na história, chegou ao último dia com dois ciclistas separados por menos de um segundo na geral, levando a melhor sobre o australiano Jai Hindley (Sunweb).
Aos 25 anos, o escocês tornou-se no primeiro homem na história a ganhar o Giro sem ter vestido de rosa um único dia, aproveitando os últimos 15,7 quilómetros, corolário de uma estratégia de corrida brilhante, para bater uma Sunweb que desperdiçou a ‘corsa rosa’ com más opções táticas.
As grandes Voltas são decididas ao longo de três semanas de alta montanha, dificuldades com o vento, contrarrelógios e um misto de apoio da equipa e de ‘garra’ até final. Neste caso, a conquista de Geoghegan Hart começou com um bidon.
Ainda antes da partida real da terceira etapa, o britânico Geraint Thomas, vencedor da Volta a França em 2018, sofreu uma queda grave ao acertar num bidon atirado para o chão, perdendo mais de 10 minutos antes de acabar por abandonar.
‘Órfã’ do chefe de fila num dia em que perdeu a ‘maglia rosa’, que estava no corpo do italiano Filippo Ganna e passou para o português João Almeida (Deceuninck-QuickStep), a INEOS voltou-se para vitórias em etapa e não se deu nada mal.
Ganna venceu a quinta tirada, o equatoriano Jhonatan Narváez a 12.ª, antes de o italiano completar um ‘hat-trick’ no ‘crono’ da 14.ª etapa, um dia antes de Hart se anunciar.
Na subida a Piancavallo, o britânico distanciou toda a concorrência para erguer os braços, conseguindo a primeira vitória em grandes Voltas, mas o melhor seguir-se-ia nos próximos dias, com a subida consistente na geral e nova etapa, a 20.ª.
Aproveitou o Stelvio para ‘fugir’ com Jai Hindley, e, nesse dia e no sábado, em Sestriere, beneficiou do trabalho de um soberbo Rohan Dennis, a ‘estrela’ australiana do contrarrelógio convertida em ‘super domestique’, para se assumir como o grande candidato à vitória final, confirmada em Milão.
“Quando começámos a equipa [Sky], o Tao faltou à escola para vir ver o primeiro dia; agora está aqui”, contou no sábado o ‘patrão’ da INEOS, Dave Brailsford, entre lágrimas após a segunda vitória do seu pupilo.
Com efeito, o ciclista nascido em Londres, que gosta de professar-se como escocês por via do pai, já tinha passado pela INEOS como estagiário, em 2015, mas foi na Hagens Berman Axeon, onde travou amizade com Ruben Guerreiro (Education First), que se fez ciclista e voltista.
Regressou à ‘casa mãe’, em 2017, e já então lhe vaticinavam um grande futuro, ainda com 25 anos, veio a cumprir, vencendo também a classificação da juventude, num Giro de sonho em que esperava trabalhar para Thomas e acabou a conquistar a equipa.
Como o amigo Ruben Guerreiro, também Hart é competitivo e não se contenta se achar que falhou: na 20.ª etapa da Volta a Espanha de 2019, juntou-se a uma fuga que incluía o português.
Nesse dia, como noutros em que ambos andaram em fuga, acabaram por ser alcançados, numa tirada vencida pelo atual campeão do Tour, o esloveno Tadej Pogacar (UAE Emirates), e, embora Guerreiro tivesse sido o último a ser apanhado, foi Hart a levar para casa um… pouco desejado prémio de combatividade.
“Prémio mais estúpido, é o que eu acho”, atirou, em declarações à Eurosport, pouco depois de erguer no pódio a lembrança do dia.
João Correia, seu agente através da empresa Corso, lembra à Lusa o bom caráter do britânico.
“Quando eu estou doente, é sempre o primeiro a telefonar. Faz isso independentemente de estar numa corrida ou não. Eu é que tenho de o lembrar que sou eu que trato dele, e não ele que trata de mim. Isso é tudo o que é preciso saber da pessoa que é”, sublinha.
Em Milão, foi inscrito no troféu da ‘corsa rosa’ talvez o nome mais complicado dos 103 que constam na taça, dando nova glória ao Reino Unido, que além de Thomas também tinha perdido Simon Yates (Mitchelton-Scott), devido a um teste positivo ao novo coronavírus já com a prova em andamento.
Começou no futebol e na natação, mas foi a sensação de individualismo que o trouxe para o ciclismo. Contudo, a humildade, que o levou a trabalhar em empregos de verão desde cedo para fazer algum dinheiro, acabou por transformá-lo num futuro campeão, trabalhado a partir dos juniores pela seleção britânica.
Em 2019, a Volta a Espanha que acabou em 20.º, após dois pódios em etapas, foi uma ‘consolação’, num ano em que venceu uma tirada da Volta aos Alpes antes de ter de abandonar o Giro, então na estreia em grandes Voltas.
“Nem nos meus sonhos mais malucos podia imaginar que isto seria possível quando arrancámos. […] Na minha carreira, sonhei com um ‘top 10’, talvez um ‘top 5’. Vai demorar a assentar”, contou o britânico, a caminho do pódio, tendo sido abraçado pelo amigo de há vários anos Ruben Guerreiro (Education First), que se juntou a ele como líder da montanha, instantes depois de saber do resultado.