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O desporto é sempre apresentado como um campo de valores, um viveiro de virtudes… Mas será mesmo assim?

Talvez não, até porque abunda no desporto a hipocrisia. Tanto a hipocrisia institucional como a hipocrisia situacional.

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Detenhamo-nos nalguns exemplos.

No último mundial de futebol, na partida entre a Suíça e a Sérvia, que a primeira venceu por 2-1, Xherdan Shaquiri e Granit Xhaka, autores dos golos da Suíça, comemoraram os mesmos fazendo um gesto, com as mãos cruzadas, aludindo à águia de duas cabeças da Albânia. Disse-se que provocaram os adeptos sérvios…

Vejamos os fundamentos: Xhaka é filho de pais albaneses de origem kosovar ao passo que Shaqiri é mesmo kosovar… e sabemos que a Sérvia não reconhece a independência do Kosovo. A FIFA, solícita, abriu um inquérito e multou os dois jogadores suíços em 8,7 mil euros.

Curioso a FIFA também sancionar jogadores que chamem «macaco» a um adversário considerando isso racismo e não sancionar um jogador por insultar um árbitro ou um adversário porque esses termos fazem parte da linguagem do futebol…

Temos o recente exemplo do Inter de Milão punido com dois jogos à porta fechada, devido a cânticos “racistas” dos seus adeptos, que visaram o futebolista Kalidou Koulibaly, no último jogo com o Nápoles… Se os cânticos tivessem a forma de injúrias à mãe do árbitro o castigo seria o mesmo?

Mas um dos maiores exemplos da hipocrisia institucional encontra-se no ciclismo. Em 1999 a Nike pagou 500 mil dólares à União Ciclista Internacional para encobrir uma análise positiva de Lance Armstrong… (veja-se Albergotti, R. & O’Connell, V., 2014, “Lance Armstrong – o ciclista”, Alfragide, Livros D’Hoje).

No entanto, a mesma Nike, em Outubro de 2012, ano em que Armstrong perde os seus 7 títulos do Tour, emite um comunicado onde expressa ter sido enganada por Armstrong durante mais de uma década e que a mesma “não tolera o uso de drogas ilegais que melhorem o desempenho desportivo”. Antes da era Armstrong, alguém na Europa conhecia os US Postal? Ou deles tinha ouvido falar?

Não, foi ele que lhes deu visibilidade, foi ele que os publicitou durante todos os anos em que os carregou às costas. Mas o Estado norte-americano ainda pretende reaver de Lance Armstrong – como se só ele fosse patrocinado e não toda a equipa – a quantia de 85 milhões de euros por sentir-se defraudado pelo patrocínio abonado pelos US Postal entre 2000 e 2004… com juros referentes a 13 anos…

A hipocrisia institucional encontra-se também no desporto a partir do momento em que o movimento associativo começou a ser regido por imposição legal… da política. Exemplo disso é o actual Regime Jurídico das Federações Desportivas, pois o mesmo pode determinar que uma associação ou um clube com 2000 federados esteja representada(o) numa Assembleia Geral de uma qualquer federação apenas por um ou dois delegados… ou até não ter nenhum por não ter conseguido eleger ninguém.

No entanto, é possível uma congénere com 300 federados ter dois, três ou mesmo quatro delegados nessa reunião magna… É o que acontece quando um RJFD é feito para o futebol mas aplicado a todas as outras modalidades.

A intromissão da política no desporto há muito que é visível. E não precisamos de recorrer aos vários boicotes a Jogos Olímpicos nem à naturalização de alguns atletas… Por exemplo, no futebol americano, nos Estados Unidos, muitos jogadores ajoelham-se durante a entoação do seu hino como forma de protesto em relação às políticas daquele país.

Donald Trump já se pronunciou: “a primeira vez que se ajoelharem devem ser expulsos do jogo, à segunda devem ser proibidos de jogar durante a temporada e ficar sem salário”. Aguardemos os próximos capítulos…

Um dos últimos casos onde poderemos detectar essa hipocrisia passou-se recentemente na América do Sul (Dezembro de 2018): a equipa feminina do Atlético Huila, da Colômbia, conquistou a Taça Libertadores, mas o prémio (55 mil dólares) vai para… a equipa masculina que milita na Primeira Divisão da liga colombiana!

No campo da hipocrisia situacional poderemos ir desde a fraude nos resultados competitivos até à utilização de meios ilícitos… para não termos de falar na exploração infantil ou na corrupção.

Em 1997, no Tour de France, Richard Virenque pagou quinze mil euros a Ian Ulrich para que este o deixasse vencer a etapa de Courchevel, enquanto em 1999 Jérome Chiotti (apanhado pelo doping em 1996) pagou sete mil e quinhentos euros a Miguel Martinez, companheiro de fuga, para lhe comprar o título de campeão de França em BTT…

A belga Femke van den Driessche, de 19 anos, foi apanhada com um motor sob o assento na bicicleta com que participou no Mundial de sub-23 de Ciclocrosse de 2016 – o chamado doping mecânico.

Suspensa por seis anos e multada em cerca de 18.000 euros, foi ainda obrigada a entregar todos os prémios monetários e medalhas ganhos desde Outubro de 2015. Convocada pela Comissão de Disciplina da UCI, Femke van den Driessche nem sequer compareceu à audiência colocando um ponto final na carreira.

Caso semelhante se passou com o francês Cyril Fontaine, corredor veterano de 43 anos, também apanhado a competir com um motor na bicicleta instalado numa garrafa situada no tubo do quadro, em Outubro de 2017 em Saint-Michel de Double, na França. Resultado: cinco anos de suspensão.

As pressões a que estão sujeitos os competidores para atingirem certos resultados, as pressões a que são sujeitos não só pelas entidades patronais e pelos treinadores mas também pelos sponsors, levam a situações em que são triturados para benefício de alguns poucos. Nada mais hipócrita do que isto!

A evolução de uma actividade praticada como ócio e que acaba por degenerar numa mercantilização a isso leva. Esse é um dos sinais deste desporto pós-moderno.

E terminamos apenas com duas questões:

Por que motivo se suicidou, em 2009, Christophe Dupouey, Campeão do Mundo de BTT em 1998?

Por que motivo se suicidou, em 2011, Alberto Leon, antigo corredor de BTT?

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