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Encontramos cada vez mais entusiastas das duas rodas que além das aventuras fora da estrada, procuram desafios maiores, como exigentes provas de BTT por etapas, onde acumulam centenas de quilómetros, percorrendo montanhas e paisagens ímpares, e somando declives muito acentuados, o que acentua a exigência deste tipo de competições, que normalmente se estendem por alguns dias.

A prova de BTT por etapas

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O Bike Tansalp é uma das grandes referências mundiais em provas de BTT por etapas, não só por ser uma organização pioneira deste tipo de eventos, como também pela sua envolvência: 8 etapas/dias, onde os atletas atravessam os Alpes, razão pela qual, é considerada uma das provas de BTT mais exigentes de todo o mundo.

Ao abordar a participação numa prova desta envergadura e dimensão, deve-se analisar com detalhe toda a sua exigência, caracterizando a intensidade de esforço requerida para ultrapassar todas etapas, de forma a desenvolver um eficaz programa de treino e nutricional. É isso a que me proponho ajudar nas próximas linhas.

A análise da prova

O Transalp envolve a participação de cerca de 1000 atletas oriundos de todo o mundo, num percurso total com a extensão de mais de 660km e 22500m de subida acumulada. Decompondo tudo, temos uma média diária de altimetria em subida que ronda os 3000m distribuídos por 83km (média) de cada etapa. Existem certas zonas de maior exigência física concentradas em determinadas fases do percurso, como exemplo, o maior declive acumulado seguido são 1700 metros em ascensão, seguidos de 1400 metros a descer – o que nos alerta para outra situação, que é a condução da bicicleta em situação de fadiga (instalada durante a subida). Esse trabalho deve procurar desenvolver no atleta a capacidade de concentração, destreza, de tomada de decisão, ou seja, aperfeiçoamento técnico numa situação em que o atleta está fisicamente “mais debilitado”.

O que torna o Bike Transalp numa prova mítica é o terreno acidentado da região, que engloba no seu total mais de 315km em ascensão, e 275km em declive negativo, sendo as zonas planas (preferenciais para alguma recuperação) muito raras ao longo de toda a semana de prova.

Condições atmosféricas, hidratação e suplementação

Os dados recolhidos em algumas edições da prova, indicam oscilações entre os 22 e os 33 graus centígrados e uma humidade relativa oscilante entre os 40 e os 94%, sendo a média semanal de cerca de 70% – todos estes dados são importantes, pois ajudam-nos a perceber o quanto temos que nos aclimatar a condições que normalmente não encontramos em Portugal, e as necessidades hídricas que as mesmas vão suscitar no atleta.

É comum os atletas terem bem definidos programas nutricionais e de suplementação, desde o acordar ao deitar, dando sempre especial relevo às grandes refeições do dia: pequeno-almoço, lanche pós-prova (início da recuperação) e jantar. Isto sem esquecer o aporte nutricional volante ao longo da etapa, que assegurará principalmente as fontes de energia de rápida absorção.

A ingestão média de fluídos por atleta por dia anda na ordem os 4,5 litros, o que relativizado em termos de necessidades individuais, será de 0,1 litros por kg de peso. Esta referência é de extrema importância, pois permite assegurar que não se registam perdas significativas de peso ao longo de cada etapa.

A intensidade da prova (parte I)

Cada etapa é percorrida a uma intensidade média que ronda os 80 a 85% da intensidade máxima que o atleta suporta (intensidades baseadas em referências fisiológicas das capacidades de cada atleta – valores obtidos a partir de um protocolo de avaliação prévio).

Além da elevada intensidade registada, verifica-se que, mais de 35% do total da distância de toda a prova, é percorrido acima da intensidade limiar (com acumulação de ácido láctico). Isto significa que, estes 35% correspondem a intensidades ainda mais altas que a média atrás referidas, o que torna este tipo de competições fisiologicamente muito exigentes, requerendo uma forte contribuição energética quer através do sistema energético aeróbio, quer anaeróbio, a que corresponde uma excelente eficiência de todo o sistema cardio-vascular.

Intensidade limiar – intensidade máxima que o atleta consegue suportar num equilíbrio entre a produção e eliminação do ácido láctico ao nível dos músculos activos. É a intensidade a partir da qual, qualquer incremento da mesma, resultará num aumento exponencial desse ácido, provocando o surgimento da sensação de pernas inchadas e pesadas, provocando a instalação da fadiga.

Analisando estes valores em termos de frequência cardíaca, a média de toda a prova ronda valores na ordem dos 85% da FC máxima. Isto para o total de toda a semana. O facto de, dependendo do atleta avaliado, o tempo de esforço total superior à intensidade limiar ser entre os 27 e 36%, alicerça ainda mais a enorme exigência fisiológica da competição.

Os valores de Frequência Cardíaca

Nestas provas os valores de frequência cardíaca são usualmente mais altos no primeiro dia de prova, mantendo-se depois habitualmente estáveis ao longo dos restantes dias. A título de curiosidade, este decréscimo no valor da FC média da etapa, entre a primeira e as restantes é de cerca de 4%. Este decréscimo pode ser explicado pela fadiga inicial imposta ao organismo pela primeira etapa, pela regulação hormonal e pela redução do stress pré-competitivo, traduzido por uma redução da actividade no sistema nervoso simpático.

Curiosamente, enquanto nestas provas se regista apenas este decréscimo no batimento cardíaco médio da primeira para a segunda etapa mantendo-se depois constante até final, nas provas de estrada (que são também mais longas – 3 semanas), além deste registo, continua-se a verificar até final da prova, uma diminuição diária nos valores médios de FC de cerca de 0,4 p/m, o que corresponde no final a um decréscimo de 8 p/m.

A Intensidade da prova (parte II)

No seguimento da análise da intensidade da prova, 64% do total da competição, são percorridos a uma intensidade moderada/baixa, pelo que e olhando para a prova como um todo, comprovamos que a performance de um atleta nesta competição tem uma elevada dependência do metabolismo aeróbio, sendo o metabolismo anaeróbio (acima da intensidade limiar) o que acaba por ter um papel mais decisivo num bom resultado final, na medida em que vai descriminar uma maior capacidade de rendimento nas zonas de maior exigência física.

Contudo, convém salientar que, o indicador de esforço no qual se baseou este pequeno estudo foi a frequência cardíaca que, em provas de BTT apresenta sempre um comportamento mais “irrequieto”, sendo os registos da mesma ligeiramente acima dos reais. Tal situação é devida à grande diversidade do terreno que apresenta diferentes irregularidades, provocando constantes adaptações técnicas a obstáculos com vários níveis de dificuldade. Também influi nesta variação do batimento cardíaco um elevado número de contracções isométricas dos braços e pernas para absorver os choques e vibrações, e por último, é também resultado do próprio manuseamento e estabilização da bicicleta (técnica), o que no conjunto se traduz em pulsações cardíacas por minuto adicionais.

Toda esta problemática, pode causar alguma dificuldade na análise da competição à qual nos propusemos realizar. Isto porque, analisando minuciosamente o registo da FC de um atleta, podemos encontrar zonas de subida bastante exigentes onde o sujeito alcança valores na ordem dos 78% da FC máxima, para pouco depois, numa descida num trilho de downhill, chegar a atingir valores de 88% da FC máxima. Situação explicada pela elevada concentração mental requerida ao longo da descida, o próprio stress adicional da subida da adrenalina, o impacto da bicicleta no solo, etc.

Apesar da problemática inerente à utilização da frequência cardíaca na análise da intensidade deste tipo de esforços, vários estudos comprovam que, como todos os atletas ao longo dos 8 dias foram sujeitos a uma alimentação e hidratação idênticas, a um igual desafio competitivo, e percorreram o mesmo percurso sob as mesmas condições ambientais e mecânicas (bicicleta), e apresentaram um idêntico comportamento cardíaco linear entre eles, conseguimos obter uma ideia global correcta do impacto de uma prova de BTT por etapas, para o sistema fisiológico.

Conclusão

Com isto, e em termos de conclusão, percebemos que a nível cardiovascular a exigência neste género de competição é bastante elevada e que a preparação deve ser tanto mais cuidada, quanto maior for o desafio a que nos propomos ultrapassar. Permite-nos também ter uma reflexão atenta sobre a nossa preparação física de forma a precaver problemas de saúde subsequentes.  Esta análise serve principalmente como alerta para os factores a termos em conta, aquando nos propomos submeter a este tipo de desafios.

Bons treinos.

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