Tadej Pogacar mudou e a história do Tour mudou com ele, com o adorável miúdo esloveno, exemplo de desportivismo e determinação, a tornar-se o mais jovem bicampeão do Tour, antecipando uma nova era no ciclismo.
Basta observar atentamente o ciclista da UAE Emirates, de 22 anos, para perceber que pouco (ou nada) resta daquele ‘teenager’ tímido, com a cara cheia de borbulhas e visíveis dificuldades em expressar-se em inglês, sobretudo diante dos ‘intimidatórios’ jornalistas, que conquistou a primeira vitória como profissional na segunda etapa da Volta ao Algarve (haveria de vencer também a geral) há pouco mais de dois anos.
O novo ‘Pogi’ transborda confiança – sem nunca ser arrogante -, à vontade e descontração; apurou o inglês e, com ele o discurso, demonstrando inteligência, uma maturidade inusual para a idade, e até um q.b. de utopia em cada declaração – o deslumbramento por ser o camisola amarela do Tour, algo com que nunca se atreveu a sonhar em criança, foi visível dia após dia, desde a oitava etapa, quando ‘roubou’ a liderança a Mathieu van der Poel.
De permanente sorriso no rosto, mesmo quando está a pedalar, conquistou rivais, a quem não deixa de cumprimentar e elogiar depois das maiores batalhas, adeptos, com o seu jeito de rapaz que não se leva muito a sério, e colegas de equipa, como o português Rui Costa que, à Lusa, descreveu a ‘estrela’ eslovena como “uma joia de miúdo, super-humilde e tranquilo”.
“Acredito que venho de uma boa família e que fui educado para ser um bom rapaz”, confessou depois de ver os pais e a namorada, também ela ciclista profissional, a apoiá-lo na estrada na etapa de Andorra.
Neste Tour, mesmo sem precisar, tão sufocante era a sua superioridade, replicou a valentia demonstrada no ano passado, quando atacou diariamente para tentar, segundo a segundo, reduzir a distância para o seu compatriota Primoz Roglic, até ao espetacular contrarrelógio da penúltima etapa que lhe deu a vitória final.
Quando outros apenas ousavam atacá-lo, conformados com um lugar no ‘top 10’, tomou ele a iniciativa, inspirando-se nos seus ídolos, o espanhol Alberto Contador (vencedor em 2007 e 2009) e o luxemburguês Andy Schleck (2010), e revelando uma ambição desmedida – além de uma impaciência talvez própria da idade.
O muito era pouco para Pogacar, que quis ganhar mais segundos de vantagem, mesmo quando já tinha Jonas Vingegaard (Jumbo-Visma) e Richard Carapaz (INEOS), os homens que o acompanham hoje no pódio em Paris, a mais de cinco minutos, e quis vencer mais, tornando-se o primeiro ciclista em 86 anos a conquistar seis etapas na ‘Grande Boucle’ antes de completar 23 anos.
“O ciclismo é um jogo para mim desde o início e gosto de jogá-lo”, assumiu depois de conquistar o terceiro triunfo nesta edição, na 18.ª etapa.
E, para já, o jogo não podia estar a correr melhor, ou não tivesse subido ao pódio das três únicas grandes Voltas em que participou (logo na estreia, na Vuelta2019, foi terceiro, na primeira vez que completou uma prova de três semanas), numa precocidade inédita, assente num talento inato, numa autoconfiança e num instinto invejável na estrada, aliados à atitude sempre corajosa, que fazem do rapaz, nascido em 21 de setembro de 1998, em Komenda, um caso sério no pelotão.
“Ele pode ser o novo ‘Canibal’”, prognosticou esta semana Eddy Merckx, o ‘Canibal’ original, um dos muitos que acredita que o ciclismo pode estar a viver a ‘era Pogacar’.
Mas o primeiro amor de ‘Pogi’ nem foi o ciclismo, modalidade que apareceu quase por acaso na sua vida, quando era o futebol a força que o movia; foi o irmão Tilen, que se inscreveu no clube de ciclismo de Ljubljana, o grande responsável por hoje o esloveno ser o mais jovem bicampeão do Tour. “Quis imediatamente imitar o meu irmão, mas não tinham uma bicicleta tão pequena no clube”, revela no seu site pessoal.
Fazendo jus à perseverança evidenciada nas suas conquistas na prova francesa, não desistiu de seguir as pisadas de Tilen e, em pleno inverno, com apenas nove anos, começou a acompanhar o irmão nos treinos, participando na sua primeira corrida logo em 2008, com bons resultados, para nunca mais parar.
O potencial tremendo, corroborado pela conquista da Volta a França do Futuro (2018), chamou a atenção da UAE Emirates, que lhe ofereceu um contrato para as temporadas seguintes, com o desfecho que agora se conhece: são 29 as vitórias no seu currículo, nove delas em etapas de grandes Voltas (três na Vuelta, onde também foi o melhor jovem), além da clássica Liège-Bastogne-Liège (2021), do Tirreno-Adriático (2021) ou de dois títulos nacionais de contrarrelógio.